sexta-feira, 27 de abril de 2012

COTAS RACIAIS SIM, POR UNANIMIDADE!

Artigos

27 abril, 2012
Para mim STF criar jurisprudência sobre cotas no caso da UnB tem um lado pessoal


Sérgio Abranches

Ontem o Supremo em decisão unânime e histórica decidiu que as cotas para negros são constitucionais e necessárias. Criou jurisprudência normativa irrecorrível, vinculante, que transcendeu em muito o caso particular em exame. Era uma arguição de descumprimento de preceito fundamental contra o modelo de cotas para negros adotado pela UnB. Tratava-se de examinar se o modelo de política afirmativa para negros usando cotas, ou reservas de vagas, adotado pela UnB era ou não constitucional. Para mim era um caso exemplar, de muitos significados.

Passei boa parte da minha infância, toda minha adolescência e o começo de minha juventude em Brasília. Estudei na UnB. Em Brasília perdi meu pai e um irmão querido.

Frequentei o plenário do Supremo Tribunal Federal, desde meus 10 anos de idade, levado por meu pai, que me queria convencer a ser advogado como ele. Minha mãe foi funcionária e diretora de seção no STF. Assisti a julgamentos inesquecíveis, votos brilhantes de alguns dos maiores ministros que o STF já teve, ao longo de minha vida. Mas confesso que nenhum teve tanto significado para mim quanto o de ontem. Houve votos brilhantes. Houve argumentos importantes. Houve consciência de que se fazia história.

Tive um bom amigo negro, José Luiz, meu vizinho de quadra em Brasília. Era meu amigo, sabia algumas coisas mais do que eu. Gostava dele como gostava de meus amigos brancos. Em Brasília, aprendi, desde cedo, que havia racismo no Brasil e que eu, por algum milagre da consciência ou da alma, era resistente ao vírus social do racismo. Eu enxergava os negros, eu os reconhecia como iguais, mas eu via que a maioria não era igual. Zé Luiz era filho de funcionário, profissional de classe média, como eu. Era menos desigual que os outros negros. Mas para mim era igual e eu admirava muitas virtudes que ele tinha e eu não. Como tenho certeza que com ele aconteceu o mesmo em relação a mim. Éramos pares, não ímpares, como são os brancos e negros deste Brasil.

Uma parte muito importante de mim formou-se na UnB, que está fazendo 50 anos. Já escrevi sobre isso na Veja. Essa formação começou antes mesmo de eu fazer o vestibular. Frequentei a UnB enquanto fazia o colegial e fiz muitos amigos que foram muito importantes para mim naquele período de minha vida e minha formação intelectual e pessoal. Ia quase diariamente à “Colina”, residências de professores, encontrar com amigos na casa de Teca, filha do professor Eudoro de Souza, professor de filosofia grega. Lá tínhamos conversas de varar madrugada sobre política, cinema, música, literatura, jornalismo, artes plásticas. Tive o privilégio de ter feito cursos com Paulo Emílio Sales Gomes sobre cinema expressionista; Jean Claude Bernadet, sobre cinema brasileiro; Gianni Ratto, sobre direção de atores; Maurice Capovila, sobre direção de cinema. Foi com um professor da UnB, José Dias, que fiz curso de português no CIEM (Centro Integrado de Ensino Médio), no qual li pela primeira vez a sério Guimarães Rosa. Nesse curso, escrevi o primeiro conto (Kaos) de uma fieira que escreveria por toda a vida.

Eu fiz a faculdade de ciências sociais na UnB e também meu mestrado em Sociologia. Aprendi naquele campus praticamente tudo o que sei de sociologia e sociologia política, principalmente sob a orientação de Gláucio Soares, por cuja mão foram ensinar em nosso mestrado outros jovens e brilhantes professores, entre eles Vilmar Faria e Antonio Octávio Cintra.

Durante todo o período da faculdade, na qual não tive colegas negros, trabalhei como repórter, para poder sustentar minha vida universitária com autonomia. Também não tinha colegas negros na reportagem. No mestrado, comecei a lecionar na UnB. Cursos de Introdução à Sociologia que, a rigor, deveriam ser ministrados pelos professores com mais experiência e conhecimento. Tive várias centenas de alunos, porque o curso fazia parte do ciclo básico de Humanidades. Talvez um milhar. Tive só um aluno negro.

Usávamos um livro básico de introdução à sociologia, que seguia tipicamente a organização da disciplina no EUA: conceito de sociologia; estratificação social; socialização; relações raciais, e assim por diante. Na turma em que tive esse aluno negro, na aula anterior ao tema das relações raciais, levantei uma questão, como sempre fazia, para ajudar a leitura e a discussão do tema.

– Quais as diferenças e semelhanças nas relações raciais no Brasil e nos Estados Unidos?

Para ajudar, dado que o livro só tratava das relações raciais nos Estados Unidos, sugeri a leitura de um texto de Florestan Fernandes e adicionei uma frase do antropológo Roque de Barros Laraia, cuja perspicácia só perdia para a modéstia: “no Brasil existe discriminação racial, não existe é segregação racial, como houve nos Estados Unidos”. Os alunos me perguntaram se eu ia dar mesmo relações raciais. Eu perguntei por que não daria. Porque outros professores pulam o capítulo, me responderam. Eu arrematei:

– Como pular um dos capítulos mais fundamentais da sociologia brasileira? Como não discutir um de nossos maiores problemas?

Naquela época de ditadura, como lembrou no julgamento do Supremo o ministro Celso de Mello, o governo militar dizia oficialmente à ONU que não havia racismo no Brasil e, portanto, não havia razões para tomar medidas concretas contra a discriminação racial. Eles fizeram o que muitos pedem para fazer hoje: tiraram do censo a pergunta sobre cor. Para esconder a negritude de mais de metade de nosso povo. Vivi muitas ocupações policial-militares do campus da UnB. Muitos confrontos. Perdi, para sempre, alguns amigos e colegas que admirava, nas mãos da repressão e nos caminhos tortos da vida.

Eu tinha 21 anos. Ontem, ao acompanhar a discussão sobre o esforço da UnB para aumentar a presença de negros em suas salas, na minha época tão absolutamente brancas, ficava pensando naquele garoto negro, no dia da aula sobre relações raciais. Todos olhavam de soslaio para ele. Ninguém se atrevia a falar a palavra negro. A presença dele, por inesperada e excepcional, constrangia. Para destravar o debate tive que torna-lo inteiramente visível. Disse-lhe que ele era o único negro na sala. Perguntei se ele conhecia outros negros na universidade, como havia conseguido estar onde ele não deveria estar, pela dinâmica das relações raciais brasileiras? Respondeu que havia pouquíssimos negros na universidade, que seu pai era sargento da Aeronáutica e havia sido transferido para Brasília. Eu nunca lhe disse que seu pai provavelmente jamais chegaria a brigadeiro, embora a Aeronáutica fosse, então, a arma mais aberta ao acesso de negros à baixa oficialidade. Mas a alta oficialidade, nas Três Armas, estava reservada aos brancos.

A UnB avançou. O Brasil tem avançado, embora de forma tortuosa e dolorosa, nesse capítulo das relações raciais. O Supremo, ontem, deu um passo de muito alcance, em nossa luta pela democracia racial. Não pela alquimia da dissimulação, que finge transformar metal barato em ouro. Por ela, racismo se transmuta em democracia racial, autoritarismo selvagem vira democratismo revolucionário. Não, vamos fazer democracia social e racial reais, pela prática da inclusão e da integração.

Para mim, o fato de a ação que fundamentaria talvez a mais importante das decisões de jurisprudência normativa sobre ação afirmativa no Brasil se referir à UnB foi, também, o fechamento de um ciclo. Ciclo que começou ainda no começo da minha juventude, quando via as diferenças que havia entre meus amigos negros e meus amigos brancos. Foi na UnB que comecei a tratar da questão racial no Brasil, a tentar revelar o racismo dissimulado em nossas relações sociais. Foi lá que aconselhamos a um amigo negro, que estudava arquitetura, a aceitar um convite para ir à Suécia e tentar estudar por lá, porque lá, terra de escandinavos louros de olhos azuis, ele teria melhores oportunidades que aqui. Foi e realmente ficou por lá.

Ver a universidade de Brasília querer aumentar a diversidade racial em suas salas de aula, já foi um momento importante para mim. Aquelas salas de aula que frequentei, como aluno e professor, e as que foram a elas adicionadas depois que saí, que eram sempre quase todas brancas, passariam a ter cada vez mais alunos negros. A decisão do Supremo, que para mim encerra um capítulo essencial da luta política e jurídica pelas ações afirmativas no Brasil, tem um significado intrínseco fundamental, mas tem um significado pessoal forte também. Que essa decisão esteja associada ao esforço da UnB pela igualdade de acesso para os negros, fecha um ciclo para mim. Assisti ao julgamento de mãos dadas com meu aluno negro, com meu amigo Zé Luiz e com todos meus amigos e amigas negros, e senti como uma vitória minha também. E quero agradecer a esse aluno e aos amigos e amigas, a oportunidade de ter estado ao lado deles desde aquela época. Me fez uma pessoa muito melhor.http://WWW.ECOPOLITICA.COM.BR

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